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Edital de concessão: morte do “espírito” do Parque Ibirapuera

por Roberto Carvalho de Magalhães
Parque Ibirapuera, Ficus elastica am frente ao Auditório. Foto: Roberto Carvalho de Magalhães.

O edital de concessão do Parque Ibirapuera o trata como uma “coisa”, sem alma ou história, um objeto que pode ser mudado sem dano algum para a cidade e os seus habitantes. Pois se engana. O parque tem uma identidade, um “espírito”, que lhe é dado, sim, pela sua forma física histórica, sedimentada, pelos seus edifícios tombados, pela sua flora e fauna. Mas não é “só” isso. A sua identidade também é resultado de uma longa trama de histórias coletivas e pessoais, de vivências e relações afetivas dos frequentadores com ele.

O Parque Ibirapuera e um dos seus habitantes. Foto: Roberto Carvalho de Magalhães.

A relação profunda da população com um parque como o Ibirapuera pode ser explicada com a ajuda de um texto que fala, de forma geral, da identidade das paisagens. Trata-se de “O espírito da paisagem”, de Carlos Fernando de Moura Delphim, arquiteto do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Arquitetônico Nacional). Na sua palestra do 5.° Simpósio Internacional de Paisagismo), Delphim diz


O espírito do lugar é constituído por elementos tangíveis como edificações, sítios, paisagens, rotas, objetos e por elementos intangíveis como as memórias, narrativas, documentos escritos e tradição oral, rituais, festivais, sentimento de sagrado e de adoração, conhecimento tradicional, valores, texturas, cores, odores e outros, ou seja, os elementos físicos e espirituais que dão significado, emoção, sentimento e mistério ao lugar. O bem material, tangível, não é mais considerado de forma destacada do espírito do lugar, seu componente intangível. Nada há de adverso entre eles, ambos se interagem e se edificam de forma mútua e recíproca.


A capacidade de percepção do espírito de uma paisagem é uma experiência altamente enriquecedora para aquele que a contempla. No entanto, em conseqüência de problemas do mundo moderno como mudanças climáticas, turismo, conflitos armados e desenvolvimento urbano desordenado provocarem transformações e ruptura nas sociedades e nas paisagens que as identificam, torna-se necessário defender e preservar, conjuntamente com os bens culturais, o espírito que os anima.


A apreensão da paisagem varia segundo indivíduos, grupos ou toda uma sociedade. A forma como os habitantes de uma região a percebem fundamenta-se em experiências locais, familiares ou pessoais. Um rio oculta o segredo daqueles que afogou, aqueles que conheceram ou cuja história aprenderam de seus antepassados. O visitante advindo de outras paragens, mesmo não dispondo dessas informações, poderá intuir, poderá pressentir a sutil presença de reminiscências de possíveis episódios ocorridos naquela paisagem. O que perceberá em um dia sombrio irá diferir do que sentirá em um dia de sol. (Revista Brasileira de Horticultura Ornamental, V.16, Nº 1, 2010, 31-33)

Parque Ibirapuera. Foto: Ellen Patricia Duarte.

Pois bem, nas páginas desta revista, temos publicado artigos que falam do “espírito” do Parque Ibirapuera, da interação dos seus habitantes – árvores, aves, museus – com os seus visitantes. Apesar dos problemas recorrentes de segurança e manutenção – que, certamente, com o edital apresentado não serão resolvidos –, o parque é muito amado pelo que é, pela sua história, pelas instituições culturais que nele vivem, pelo seu arvoredo e pela sua fauna. Considerá-lo como um vulgar parque de diversões ou um shopping center – que é o que o edital de concessão apresentado faz –, com sugestões e autorizações para transformá-lo em um caça-níqueis, é simplesmente ignorar a sua identidade e desrespeitar a relação que a população de São Paulo, a verdadeira dona do Parque Ibirapuera, tem com ele.

Numa cidade com uma falta alarmante de lugares e referências identitárias, conceder o Parque Ibirapuera, um dos poucos locais onde a identidade de São Paulo é sentida com força, para uma vulgar exploração comercial – e sem dúvida em detrimento do seu interesse público –, é o equivalente de um decreto de morte. Se não física, moral com certeza.

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