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Ai, ai, ai… sobre a pichação do Monumento às Bandeiras

por Roberto Carvalho de Magalhães

A pichação recente do Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret, no Ibirapuera, levanta um grande número de questões. Deixando de lado o aspecto patrimonial, legal e econômico – o ataque ao patrimônio público e os gastos que dele derivam para a limpeza e manutenção –, concentremo-nos no aspecto cultural dessa ação.

Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, pichado recentemente.

Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, pichado recentemente.

A obra de Brecheret foi encomendada pelo governo de São Paulo em 1921 e só ficou pronta pouco antes da inauguração do Parque Ibirapuera, em 1954. Tendo sido projetada muito mais cedo, ele leva as marcas do estilo déco e do modernismo, que tem o seu lançamento oficial em 1922, com a Semana de Arte Moderna de São Paulo, mas que estava em gestação há algum tempo. Uma das características salientes do Modernismo foi – e continua sendo – a introdução do elemento nacional, indígena, negro (linguagem, música, formas visuais, lendas e crenças) na elaboração da criação artística. Não como mero folclore ou citação, mas como uma das bases na formação de um estilo próprio. Brecheret está entre os artistas que introduzem a cultura indígena na sua obra, especialmente formas derivadas da arte marajoara.

No caso do Monumento às Bandeiras, como ocorria na história da arte de forma quase exclusiva até o século XIX, o artista é chamado a dar forma a um tema narrativo que não é escolha sua, mas do seu cliente. Normalmente, para os artistas, o tema narrativo é o que menos conta na obra. A sua preocupação está voltada para a linguagem e a forma a serem desenvolvidas. Neste caso, sim, o conjunto se refere ao papel das bandeiras paulistas na formação do estado de São Paulo e do Brasil. O tema têm grande complexidade, ainda que seria ridículo negar o papel dos bandeirantes na perseguição dos índios e na escravatura.

Mas o monumento do Ibirapuera, em si, glorifica mesmo os massacres perpetrados pelos bandeirantes? A sua própria forma não nos autoriza a dizer isso. O Monumento às Bandeiras, concretamente, mostra uma viagem, o esforço dos bandeirantes em puxar/empurrar uma canoa durante uma expedição fluvial. Entre eles, veem-se figuras de várias etnias – o tipo português, o mameluco, o negro e o índio – associadas nessa viagem. Concretamente, o que se vê é uma galeria dos tipos étnicos brasileiros, a base da sua população, tanto hoje como na época em que Brecheret fez o seu projeto. E por que Victor Brecheret teria se inspirado, também, no estilo da arte indígena da ilha de Marajó, senão para a homenagear e valorizar? Esse seu interesse é um dos fatores do descobrimnto e da valorização da civilização marajoara ocorrida no século passado.

Duas esculturas de Victor Brecheret, exemplos da sua valorização e do seu grande interesse pela arte marajoara. À esquerda, “O índio e a suassuapara”; à direita: “Drama marajoara”.

Duas esculturas de Victor Brecheret, exemplos da sua valorização e do seu grande interesse pela arte marajoara. À esquerda, “O índio e a suassuapara”; à direita: “Drama marajoara”.

Ver nesse monumento, simplesmente, uma propaganda da hegemonia dos colonos e um símbolo do massacre dos índios pelos bandeirantes – e, por extensão, um “símbolo da opressão do povo pela elite econômica paulista” – é um grande equívoco, além de cômico. Essa propaganda está, fundamentalmente, nas palavras emprestadas ao monumento e não no monumento em si. Sim, a história precisa ser reescrita e liberta da propaganda. Mas a própria propaganda já se tornou parte da história – nas obras de arte, nos monumentos, nos filmes, nos romances, nas novelas, etc. – e, removê-la, seria, entre outras coisas, perder a oportunidade de compreender os mecanismos históricos mais profundamente.

Além do mais, há algo que está acima disso tudo: a arte. Essa é a maior obra de Victor Brecheret, um monumento déco tardio, que está ligado a uma época e a uma linguagem artística e arquitetônica que nos reconduz à São Paulo pós Semana de Arte Moderna. Reduzir o monumento somente a um símbolo de propaganda de um regime sanguinário é desconsiderar o seu lado artístico, a sua linguagem arrojada, que está nos alicerces da arte brasileira. Deveríamos, agora, reivindicar a remoção de todas as igrejas porque participaram, no passado, desse processo de submissão dos povos ameríndios e justificaram a escravidão dos negros? Vamos eliminar todas as esculturas em parques e praças que tenham como tema a mitologia grega porque há muito deixamos de acreditar nos deuses do Olimpo?

Victor Brecheret, Monumento às Bandeiras, detalhe com figuras indígenas.

Victor Brecheret, Monumento às Bandeiras, detalhe com figuras indígenas.

A pichação do monumento do Ibirapuera (e não é a primeira vez) provocou várias reações – e algumas, infelizmente, muito desinformadas, que tendem a justificar tal ação e até mesmo a vislumbrar a remoção de monumentos como forma de “reparação histórica”. Uma delas foi a de Leonardo Sakamoto, no seu blog do UOL Notícias. Surpreendeu-me – e muito – a sua posição, pois, normalmente, ele é um comentarista atento às nuances e evita os maniqueísmos fáceis. Um escorregão enorme na casca de banana da banalidade e do simplismo.

  • Leia o artigo de Leonardo Sakamoto aqui.

A pichação ou remoção de um monumento, especialmente um monumento chave na história da arte brasileira, não condizem com uma visão crítica da história. Condizem mais com o espírito dos regimes totalitários – de direita ou de esquerda. Muitas das reações na página Facebook dele revelam, para mim, a falta de responsabilidade mostrada no seu artigo. Ele alavanca uma ignorância e um fanatismo extremo nos leitores. Já tentaram fazer isso com Monteiro Lobato, no Brasil. Tentaram – e continuam tentando – fazer o mesmo com Mark Twain, nos EUA, um dos maiores aliados dos negros e da emancipação dos negros, por causa do vocabulário empregado pelo personagem Jim em “As aventuras de Huckleberry Finn”, um dos maiores romances da literatura mundial, de grande humanismo e implicitamente antiescravagista.

Infelizmente, a miopia intelectual e cultural de muitos militantes políticos e líderes de minorias (ou maiorias) só sabe propor a remoção de algo que não sabem interpretar e elaborar criticamente… Isso significa uma coisa: a falência do sistema educacional, que não prepara para a análise e para as nuances, que não fomenta o aprofundamento crítico Alguém, no caso do Monumento às Bandeiras, se perguntou por que muitas das figuras realizadas po Brecheret têm feições indígenas ou negras? Ou por que ele não representou um massacre em andamento, em que os indígenas seriam apresentados como bárbaros selvagens e os bandeirantes como heróis, no melhor estilo hollywoodiano? Brecheret estava pouco se lixando para a “propaganda” a que alguns atrelam o monumento. Na verdade, fez um compêndio da diversidade racial brasileira, figuras belíssimas de grande força expressiva. Mas isso já parece muito complicado para o maniqueísmo e simplismo vigente entender… Com essa mentalidade, não sobraria sequer uma obra de arte no mundo!

Não, a pichação do Monumento às Bandeiras é difícil de justificar. Ela se explica, sobretudo, com a miopia cultural, com a grande ignorância em história da arte, com o desconhecimento dos processos históricos e com uma raiva infantil e mal canalizada. Que tal pesquisar um pouco sobre a vida e a obra de Victor Brecheret, para descobrir coisas que os chavões pseudo revolucionários escondem? É, eu sei, dá trabalho.

Post scriptum (02/10/2016): Convém lembrar que, bem perto do Monumento às Bandeiras, fica o Museu Afro Brasil, dedicado ao aprofundamento das raízes, da história e da importância da cultura afro no Brasil, o qual também realiza exposições que resgatam e valorizam as culturas indígenas, miscigenadas e de grupos minoritários de imigrantes.

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